segunda-feira, 21 de outubro de 2013

A ESCRITA DA BÍBLIA E A TRADIÇÃO ORAL


Uma pequena reflexão sobre a transmissão e preservação do texto Bíblico em seus primórdios

O objetivo da nossa existência é sermos semelhantes a Jesus, e a simples verdade é que Jesus estudava a Bíblia. Ele conhecia a Bíblia.

Tremper Longman III

Entender como a Bíblia foi escrita nem sempre é uma tarefa fácil. Especialmente porque temos o hábito de analisarmos todas as coisas de acordo com a lente de nosso entendimento pessoal e empírico. Esse entendimento restrito muitas vezes dificulta a compreensão de alguns fatores envolvidos no processo de escrita da Bíblia e que são bem diferentes da maneira como pensamos, trabalhamos e vivemos atualmente. Tremper Longman, nesse sentido, faz uma afirmação muito importante que nos ajuda a entender essa diferença, quando diz que “a Bíblia foi escrita em um tempo e numa cultura muito diferente da nossa. Isto posto, para descobrir o significado do autor, temos de aprender a ler como se fôssemos um dos seus contemporâneos”[1]. Por isso, é imprescindível que entendamos o processo histórico envolvido na formação da Bíblia e do Cânon, para depois tentarmos entender o Seu conteúdo devidamente contextualizado e aplicado.

Outro problema, ainda, é apresentado por Longman, quando diz que:
Muito frequentemente, distorcemos o significado da Bíblia, permitindo que nossas experiências moldem nossa compreensão de uma passagem ao invés do contrário. Muitos leitores tiram a passagem de seu contexto para apoiar as suas teorias doutrinárias, ignoram o restante dos ensinos bíblicos e argumentam que a sua “verdade” é a mesma da Bíblia.[2]
Esse problema de interpretação é fruto da tendência pós-moderna desconstrucionista, que afirma que o verdadeiro sentido do texto não é dado por seu autor, mas é determinado pelo leitor. A isso dá-se o nome de “eisegese”[3].

O conceito de desconstrucionismo surge pela primeira vez em 1962 com a "Origem da Geometria" de E. Husserl. Depois é introduzido e popularizado por Jacques Derrida, que é considerado como o proponente desse relativismo histórico e linguístico, afirmando que “não existem fatos, apenas interpretações”. A ideia básica do desconstrucionismo é a de dar ao texto o sentido e significado que o leitor desejar. Ainda, em um de seus livros, “A Gramatologia”, Derrida defende que a linguagem escrita precede a linguagem oral. Esse é um conceito filosófico conhecido como princípio antiidealista[4].

Esses conceitos têm sido muito utilizados para se combater a história da escrita da Bíblia e a formação de seu cânon, especialmente pelo liberalismo teológico. Isso porque a corrente ortodoxa e histórica da Igreja ensina e defende que a tradição oral era bastante comum e que só depois o texto bíblico fora produzido. Em outras palavras, Stephen M. Miller e Robert V. Huber afirmam o seguinte:
Inicialmente, pais e mães, provavelmente, contavam a seus filhos histórias sobre os seus próprios pais e avós. O próprio Abraão deve ter se engajado nessa transmissão de histórias [...] Os hebreus não eram o único povo a passar adiante as suas histórias oralmente. Várias narrativas babilônicas antigas têm alguma semelhança com as narrativas da Bíblia [...] Contar histórias, portanto, não era apenas para diversão. Na verdade, era uma forma de preservar a cultura do povo, de fazer com que soubessem quem eles eram e como eram diferentes dos seus vizinhos. As histórias serviam para lembrar aos hebreus o que os tornava especiais [...] A tradição oral, como é chamada atualmente essa antiga prática de contar histórias, continuou depois que os hebreus foram libertados da escravidão no Egito e, posteriormente, quando mudaram para a terra que Deus havia prometido para eles.[5]
Dessa forma, é historicamente comprovado que a prática da tradição oral era bastante comum entre os povos antigos e que parte de seus escritos têm por base essa prática. Então, o princípio antiidealista é insustentável, pelo menos quando tratamos da história e da formação do texto bíblico.

Por outro lado, surge outro problema que é a capacidade de memorização e preservação da veracidade e fidelidade da história transmitida. Para defender que a mensagem foi adulterada e distorcida com o passar dos anos de transmissão oral, alguns têm utilizado o exemplo da brincadeira chamada “telefone sem fio”, em que se reúnem várias pessoas e uma mensagem é transmitida de ouvido em ouvido, e para a surpresa de todos, quando a mensagem chega ao ouvido da última pessoa já está alterada e corrompida. Esse exemplo tem sido utilizado para se afirmar que a tradição oral simplesmente distorceu a verdade dos fatos e que a Bíblia nada mais é que uma coletânia de mitos e fábulas distorcidas ao longo dos séculos.

Então, é preciso relembrar o que Tremper Longman afirmou: “a Bíblia foi escrita em um tempo e numa cultura muito diferente da nossa”. Na verdade, não havia problema com a capacidade de memorização dos povos antigos. O problema real ocorre conosco hoje. A Dra. Nanci Azevedo Cavaco[6] faz a seguinte declaração:
Atualmente, o uso da escrita, de agendas e de outras facilidades tecnológicas criou em nós a “preguiça” de pensar, a acomodação, que faz com que não utilizemos nossa memória, para resgatar as informações, e que fiquemos inseguros quando sem recursos externos para nos auxiliar na tarefa de lembrar. Acreditamos que para resgatar algo da memória é necessário muito esforço.[7]
Da mesma forma, o brasileiro Alberto Dell’Isola, detentor de dois recordes Latino-americanos de memorização, afirma que “dado o desleixo intelectual de nossa geração, acabamos contemplando gênios como Albert Einstein ou Leonardo da Vinci da mesma maneira que os povos antigos: como se fossem seres dotados de poderes sobrenaturais”[8]. Portanto, a brincadeira do “telefone sem fio” não se aplica sob nenhuma circunstância à realidade de vida dos povos antigos.

Cientificamente falando, estimando-se que o nosso cérebro tenha 1012 neurônios, John Von Neumann, matemático húngaro falecido em 1957, calculou que nosso cérebro tenha a capacidade de armazenar 280 quintilhões de bits de memória. Isso é o equivalente a 280 bilhões de gigabytes. Com toda essa capacidade e vivendo em uma sociedade que exigia a prática da memorização, é fácil entender que memorizar fielmente histórias e fatos não era uma tarefa tão difícil como se pensa hoje. Então, o que mudou não foi a capacidade do ser humano, nem sua estrutura cerebral, mas a sua acomodação frente ao desenvolvimento tecnológico.

Antes dos fenícios inventarem o alfabeto linear, toda a transmissão de informação era realizada de forma oral e isso deveria ser feito com seriedade e dedicação, pois implicaria de forma direta na preservação de sua cultura e organização social-político-religiosa. Tudo isso há a aproximadamente 1700 anos antes de Cristo.

Ao estudar a história da educação no antigo Egito, Margaret M. Bakos fez a seguinte declaração:
Sabe-se que os estudos compreendiam duas partes. Na primeira o estudante na memorização, através da cópia de listas de hieróglifos, numerados e classificados na categoria, juntamente com seus significados. Depois de passarem por esta primeira parte, os jovens iniciavam o exercício da composição e tinham acesso à cartas privadas e administrativas e finalmente aos textos religiosos, especialmente aqueles do deus da sabedoria, Thot, o qual era invocado no início de cada estudo. Depois eram iniciados nos textos literários, os de sabedoria e encerravam o ciclo copiando os romances e os contos.[9]
No antigo Egito, a primeira fase da educação se dava não em uma escola, mas em casa com os pais da criança. Só depois este iria para uma escola. E em ambas as fases o egípcio sempre era treinado mentalmente com o intuito de memorizar. Essa era uma prática comum no Egito daquela época.

Como podemos perceber, a prática da memorização era comum a todos os povos antigos, e isto inclui os hebreus. Um meio de demonstrar isso claramente é através dos achados arqueológicos, a exemplo do calendário Gezer, citado por James Packer:
Logo após a época de Salomão, alguém preparou a tabula de argila que conhecemos como o famoso "calendário de Gezer". Aparentemente, não passava de um exercício de um aluno para memorizar a atividade agrícola de cada mês do ano, mas até data recente era nosso único espécime de escrita hebraica.[10]
Assim sendo, a tradição oral não apresenta nenhum obstáculo para a manutenção do ensino da preservação da integridade e do conteúdo do texto bíblico.

Robson T. Fernandes

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NOTAS

[1] LONGMAN, Tremper. Lendo a Bíblia com o coração e a mente. São Paulo: Cultura Cristã, 2003. p.93.

[2] Idem. P.95.

[3] Exegese é extrair do texto o seu real significado. Eisegese é injetar no texto um sentido desejado pelo leitor, que não existe ali.

[4] O princípio antiidealista defende que a existência precede a essência.

[5] MILLER, Stephen M.; HUBER, Robert V. A Bíblia e sua História: O surgimento e o impacto da Bíblia. Barueri: SBB, 2010. p.12,13

[6] A Dra. Nanci Azevedo Cavaco é Psicanalista, Psicopedagoga, Psicoterapeuta, Máster Pratictioner e Coach em Programação Neurolinguística, Neurocientista com especialização em aprendizagem, memória e TDAH (Transtorno de Défict de Atenção e Hiperatividade), Neurocientista membro da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento.

[7] CAVACO, Nanci Azevedo. Qual a Diferença entre sua Memória e a Memória de quem Viveu na Antigüidade?. Disponível em: Acesso em: 23 de agosto de 2012.

[8] DELL’ISOLA, Alberto. Mentes brilhantes. São Paulo: Universo dos livros, 2010. p.14

[9] BAKOS, Margaret Marchiori. Fatos e Mitos do Antigo Egito. Porto Alegre: Edipucrs, 2001.

[10] PACKER, James I.; TENNEY, Merrill C.; WHITE, William. O Mundo do Antigo Testamento. São Paulo: Editora Vida, 2001.